Racismo e consciência afroindígena

                                                                                                               Foto: Projetooficinadehistoria.blogspot.com.br
Foto retirada do blog do Projeto Oficina de História: garotas brincam com cabelo da professora de História, no Xingu    

Um dia, uma mulher de seus 35 anos me disse: “Entendo que os negros sofrem discriminação e que são ignorados como seres humanos, mas os índios, estes não considero gente.” Eu era ainda jovem, na casa dos vinte e poucos anos. Fiquei abismado com a declaração dela. Irmã de uma amiga minha, ela tinha visível sangue indígena correndo nas veias.

Sua mãe era uma senhora alta e forte, de cabelos castanhos compridos, rosto corado e pés avantajados. Até hoje não sei de onde seus pais vieram para Goiânia. Mas eram do interior de Goiás. Do interior, exatamente como minha família e eu. A mãe dela era pelo menos neta de indígenas, pensava eu. Não disse nada porque, ao se opor tanto aos nativos, talvez se sentisse ofendida, e eu não queria isso.

A aversão ao passado, esse medo de dar vazão à consciência primitiva, também ocorre com certos mulatos que se sujeitam emocionalmente ao discurso cínico e racista de uma certa elite branca e segregacionista.

Esses deslocados seres de sangue negro correndo nas veias afirmam que os negros são um povo preguiçoso e sem classe cujos membros são os principais racistas de si mesmos. Dizem isso sem dar conta do quiproquó racista em que se metem, pois estão reproduzindo um discurso racista que não foi a consciência negra que inventou.

Voltando ao caso dos indígenas, precisamos confessar que eles são os mais discriminados entre os brasileiros. A perseguição que sofrem no Mato Grosso do Sul, a violência cotidiana e a invisibilidade como cidadãos no Norte e no Nordeste do país, a quinta categoria à qual são jogados como sujeitos em todo o país, principalmente no Sul e no Sudeste, são aviltantes. E não falamos muito sobre isso.

Atitudes racistas

Recentemente, dois fatos racistas foram propagados na televisão, um nominalmente direcionado à cantora negra carioca Ludmilla, e outro, a todos os grupos étnicos indígenas do Brasil. No primeiro caso, nos dias 9 e 17 de janeiro deste ano, o jornalista da TV Record de Brasília, batizado (não sei por qual nação) de Marcão do Povo, chamou Ludmilla de macaca.

“É uma coisa que não dá para entender. Era pobre e macaca, pobre, mas pobre mesmo”, disse o jornalista. Foi demitido, após reação de fãs, representantes da consciência negra e da própria cantora, que além disso o está processando.

Um dia antes do primeiro xingamento em forma de comentário de Marcão do Povo, a jornalista da Rede Record Goiás, daqui de Goiânia, Fabélia Oliveira (programa Sucesso no Campo), havia proferido no ar sua opinião de cinco minutos, tentando criticar o samba-enredo intitulado Xingu, o clamor que vem da natureza, da escola de samba carioca Imperatriz Leopoldinense, que seria (e foi) apresentado no desfile de carnaval da Sapucaí, no Rio de Janeiro.

O problema é que Fabélia Oliveira misturou alhos com bugalhos, ao querer defender o agronegócio, cuja imagem, segundo ela, estava sendo prejudicada pelo samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense. Em vez de críticas ao samba-enredo, falou um montão de bobagens sobre um assunto que ela certamente não conhece, a história e as diversas culturas das etnias indígenas que vivem na reserva do Parque Nacional do Xingu. São 14 etnias.

Nem precisava conhecer sobre as outras centenas de culturas indígenas que existem Amazônia adentro ainda hoje, além de Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste brasileiros, incluindo Goiás. Não precisava. Bastava não falar asneira. Mas foi o que ela fez.

“Que conhecimento o malandro carioca tem para falar do homem do campo, do índio, da floresta para dizer que está certo ou errado e que alguém pede socorro. Eles falam que a floresta está pedindo socorro, mas não abrem mão da tecnologia”, diz Fabélia Oliveira. De uma sentença para outra, num átimo, ela pula da referência aos compositores do samba-enredo a um suposto discurso indígena.

“Ah, mas o Xingu está pedindo socorro. Por quê? Eles (os índios) querem a mata para preservar sua cultura? Estão corretos. Sou a favor disso, se o índio for original. Agora, deixar a mata reservada (sic) para comer de geladeira não é cultura indígena, não. Sinto muito. Se ele quer preservar a cultura, ele não pode ter acesso à tecnologia que nós temos. Ele não pode comer de geladeira, tomar banho de chuveiro e tomar remédios químicos. Porque há um controle populacional natural. Ele vai ter de morrer de malária, de tétano, do parto. É a natureza. Vai tratar da medicina do pajé, do cacique, que eles tinham. Aí justifica”.

Depois de tudo isso, até onde sei, ninguém parece ter dado a mínima. Reagimos meio que com indiferença, inclusive nós negros, às questões indígenas. A imprensa repercutiu o caso como fez com o da Ludmilla, mas não causou comoção nenhuma no coração da sociedade. Fabélia Oliveira não pediu desculpas, e até onde sei, não sofreu retaliação nenhuma.

Saber olhar para a história

Ninguém se importa com os indígenas, a não ser parcos setores organizados, como núcleos de pesquisa da cultura indígena em algumas universidades. A única instituição que foi à imprensa dizer que entrou com um processo para exigir da jornalista um pedido formal de desculpas foi o Núcleo Takinahaky (formação de professores indígenas), da Universidade Federal de Goiás (UFG), um mês depois do ocorrido.

Respeitar a cultura indígena, ou saber olhar para a história e ver como os indígenas, que escaparam dos genocídios, sempre foram tratados pelo Estado e pela sociedade beligerante e racista não significa detestar o agronegócio ou não reconhecer a importância econômica do agrobusiness.

Trata-se apenas de saber que se alguns (poucos) indígenas hoje usam tecnologia e comem comida de geladeira não o fazem por causa de gente que tem a mentalidade da jornalista, mas por causa de poucos e determinados grupos de pessoas, como os Villas-Bôas (Claudio, Leonardo e Orlando), que deram a vida para preservar a cultura e a vida dos nativos e o seu direito de acesso a outros modos de civilização.

Em todo caso, pessoas que pensam como Fabélia Oliveira, nem convivendo com uma tribo indígena conseguiria entender a dimensão do outro, histórica e culturalmente. Poderíamos dizer vai ler um livro, ver um documentário. Alimente-se de conhecimento sobre alteridade com Tzvetan Todorov, lendo A conquista da América: a questão do outro, ou Eduardo Viveiros de Castro, lendo A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, ou mesmo Claude Lévi-Strauss, lendo A oleira ciumenta, para mais tarde chegar a Tristes trópicos. Darcy Ribeiro é outra boa dica com O povo brasileiro.

Eu poderia dizer algo assim para uma mentalidade preconceituosa e despreparada para falar de cultura e comportamento indígenas no Brasil como a da jornalista Fabélia Oliveira. Mas talvez seria em vão.

Quarup

Ainda assim, se alguém quiser começar por algum lugar a compreender os indígenas e as políticas de Estado e institucionais que tentam preservá-los em meio a tanta hostilidade, e achar que os livros citados são puxados, há várias outras maneiras, como ler Quarup, de Antonio Callado, por exemplo. É um romance de 574 páginas, mas é um romance.

Quarup narra a luta de um grupo de pessoas para salvar os indígenas do Xingu, numa nova interpretação das antigas bandeiras, juntando diplomaticamente etnias da região, algumas delas rivais, em torno de um projeto maior, a criação do Parque Nacional do Xingu. Isso na década de 1950. E parece que deu certo.

Os irmãos Villas-Bôas estão representados nessa obra de ficção, que busca um profundo sentido de nação. Não fosse a intervenção deles, os índios do Mato Grosso hoje estariam em maus lençóis. Ainda assim, continuam lutando por demarcações contra o avanço de grileiros, produtores rurais, garimpeiros e aproveitadores de toda sorte. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, recorrentemente vemos pela imprensa como estão sendo assassinados ou seviciados, violentados de todo modo. E pouco se faz.

Hoje é celebrado o Dia Nacional do Índio. Pergunte a um indígena se ele gosta de ser chamado de índio. Provavelmente, vai dizer que não. Olhamos para um indígena, de qualquer etnia, e não nos damos o trabalho de saber a que cultura pertence, que língua fala. Para nós, é tudo índio, é um só.

Esse reducionismo é a primeira indicação de um sentimento racista. A segunda é olhar para um povo inteiro e julgá-lo como um indivíduo. Se o raciocínio estiver complexo, é só pensar em como um antissemita olha para os judeus e vê a todos como a um só, e desse modo mata seis milhões como se estivesse matando apenas um. Retira-se a individualidade do indivíduo e joga na coletividade, e depois pega a coletividade e reduz a uma individualidade. O racismo faz isso.

Consciência

É muito raro encontrarmos uma pessoa branca, mestiça ou negra que tenha um amigo indígena, tamanho é o isolamento desses cidadãos. Há uma série de considerações a esse respeito, é claro. Uma delas é o fato de os indígenas viverem nos rincões mais afastados do país.

Mas é bom lembrar que em São Paulo há indígenas vivendo nos perímetros urbanos em uma miséria de dar dó. E duvido que haja tantos brancos e negros fazendo amizade com eles por lá. Os indígenas estão sós.

Por isso, hoje, precisamente hoje, recorro à minha consciência negra para falar de racismo. Qualquer um que discrimina os indígenas é racista ou, no mínimo um preconceituoso mal educado. E digo mais: o negro que discrimina indígenas não é digno da consciência negra. Disso não tenho a menor dúvida.

No Brasil entender-se negro é uma questão de identidade e de defesa contra o racismo. Muitos negros, como eu, têm sangue indígena correndo nas veias, e uns cromossomos do pigmento europeu. Neste caso, em matéria de consciência, mais valeria referir-se a uma consciência afroindígena.


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