Cartografia do desejo – a cidade e o homem
Relato
do roteiro lírico-etílico-sentimental percorrido por mim, Belém, Vilson Freitas
e Luiz Cam, num talvez sábado de outubro de 2011, em memória de Cam
Foto: Arquivo da família de Cam
Luiz Cam, arquiteto, apaixonado por cinema, documentarista e amigo: faleceu em junho de 2015, vítima de câncer |
Introdução
A
primeira vez que ouvi falar em Luiz Cam foi numa conversa que tive com Lourival
Belém Jr. Eu era repórter do jornal Tribuna
do Planalto e fui fazer uma pauta sobre o uso das técnicas do Teatro do
Oprimido com adolescentes infratores do Centro de Atenção Socioeducativa (Case),
em Trindade, em 2009. Rolou um almoço na ocasião. Belém me passou alguns de
seus documentários e um de Cam.
Aquele
também era meu primeiro encontro com Belém, que se tornaria meu amigo. E desde
aquele dia, sempre que nos víamos, Belém falava de Cam. Não me lembro de uma só
conversa com Belém que ele não tenha falado do amigo. Luiz Cam estava (e sempre
esteve) presente nas nossas conversas.
Não
importava o assunto - redução de danos, atendimentos psiquiátricos, polícia, política,
cidadania, cidade, rua, música, cinema, indagação sobre o que é a vida, sobre o
que é a arte -, Luiz Cam atravessava nossas falas e surgia nas lembranças de
Belém. Em 2011, finalmente conheci Cam.
Ele
era alto, esguio, educado com todo mundo, e mantinha sempre um disposto sorriso
no rosto. Foi então que nós três, junto com Vilson Freitas, sujeito bonachão
que trabalhava com a família de Belém, combinamos de fazer um passeio pelas
ruas de Goiânia. Nessa caminhada, tive praticamente a única oportunidade de ampla
conversa com Cam sobre uma porção de coisas. Não me lembro a data exata, mas
era talvez um sábado de outubro.
Era
um passeio lírico-etílico-sentimental. O roteiro tinha pontos de importância
biográfica para Belém e Luiz Cam, um Rum’s Day. Era uma espécie de périplo de Leopold
Bloom pela Dublin de James Joyce sem o mergulho mítico, só na superfície do
asfalto goianiense em que deslizávamos sob um sol cada vez mais quente, que
tentávamos ignorar à base de conversas e lembranças. No Rum’s Day não havia
rum, só cachaça e cerveja, que não era Guinness, mas animava a prosa.
Cam, Camseira, Cameira
Partiríamos
do mercadinho central da Vila Nova, na Praça Boaventura. Foi o único lugar onde
o copo conteve café. Luiz Cam demorou chegar ao local. Eu já havia entendido o
jogo de palavras pelo qual se formou seu apelido para os mais chegados,
Camseira. Razão pela qual Belém é Belemzeira. Poderia ser pela demora em chegar
aos compromissos com os amigos.
Entre
Cam e Camseira rola uma série polifônica que eu particularmente fui descobrindo
aos poucos. Camseira, por exemplo, num átimo poderia se transformar em Cameira.
Luiz Cameira, amante da horizontalidade da cama, não na companhia da preguiça,
mas da volúpia. Gostava da figura feminina. Era chegado a esse cobiçado tipo de
meneios, um fio que entramava a meada de desejos pela cidade.
Goiânia
para Luiz Cam era impensável sem o cinema, a arquitetura, a arte, os amigos e o
sexo feminino. O título de um soberbo documentário de Belém, cor-roteirizado
por Cam, é Imagens da cidade dos homens.
Tem a ver com as mil e uma tramas urbanas, e não exatamente com as mulheres,
embora uma bem gostosa apareça fazendo esteira em pleno Parque Vaca Brava (quem
teve ideia de colocar aquela mulher lá?).
Mas neste caso específico, é um modo evocativo de se referir à dialogia dessa
cartografia do desejo, que entre um gole e outro de cachaça bem que poderia
chegar à referência felliniana, Cidade
das mulheres.
Outra
marca dessa dialogia é o fato de Cam ser um sobrenome arranjado, um acrônimo do
Cineclube Antônio das Mortes, a simbólica casa de cinéfilos fundada por um
grupo de amigos nos anos 1980, entre eles o próprio Cam e Belém.
O
nome Antônio das Mortes, emprestado do personagem ícone de Glauber Rocha de Deus e o diabo na terra do Sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro,
se entrelaça com outro nome, menos conhecido, mas que certamente sondava a alma
de Cam quando escolheu adotar o novo sobrenome, Louis Isadore Kahn (1901-1974),
arquiteto estoniano naturalizado americano muito em voga nas décadas de 1960 e
70.
Luiz
Cam era arquiteto, e tinha as mesmas preocupações do então famoso homônimo radicado
nos EUA, para o qual a arquitetura só valia a pena se fosse para assistir as
condições humanas, dando à forma um paralelo imediato com o social. Era preciso,
portanto, olhar a cidade com as lentes do humano.
Além
disso, Cam é um personagem bíblico, que, segundo o livro de Gênesis, teve a si mesmo, sua família e
todas as gerações subsequentes amaldiçoados pelo pai, Noé, por Cam tê-lo visto
nu e bêbado. Cam era o filho caçula de Noé, e pai de Canaã. Pagou caro por ser
sincero e apontar a nudez do rei: “Maldito seja Canaã;/ seja servo dos servos a
seus irmãos” (Gênesis, 9, 25).
Séculos
depois, as teorias racistas do Ocidente cristão vinculariam a bravata bíblica ao
malogro de Cam como exilado na África com sua família, pondo-a como forjadora
do continente. O racismo inverteu o processo histórico para justificar a
escravidão do povo africano.
Como
homem negro e consciente de sua origem africana, Luiz Cam certamente sabia
dessa identidade étnico-verbal com a África. Nunca perguntei, e por isso nunca
soube, o verdadeiro sobrenome dele, até sua morte em junho de 2015, aos 52 anos,
vítima de um câncer. Luiz Carlos Sousa Rocha, era o nome dele, disse-me Belém
uma vez. Não importa tanto assim, porque ele era o Luiz Cam, arquiteto,
cinéfilo e documentarista.
Cam e a cidade
Aqui,
o que importa mesmo é a memória dessa figura ímpar de Goiânia que se preocupava
com os rumos da cidade. Na cartografia do desejo pulsando em seu imaginário,
havia uma preocupação autêntica com um ideal urbano. Por isso, além do cinema,
da arquitetura, a política (como conjunto de práticas tomadoras de decisão,
como ambiente de construção do poder) não ficava de fora de seus anseios. Tanto
é que os dois documentários dirigidos por ele a que tive acesso, As margens da Vila Roriz, de março de
2002 (24 minutos), e Desterro, de
março de 2004 (26 minutos), refletem essa preocupação. Ambos têm roteiro
assinado por ele e por Belém, seu parceiro desde os tempos de garotos.
No
primeiro documentário, com uma linguagem informal, certamente na intenção de
mostrar o real sem filtros narrativos, vemos depoimentos de moradores da Vila
Roriz com um cunho de denúncia social, mostrando as condições deploráveis das
habitações numa área às margens do Rio Meia Ponte, loteada no início dos anos
1990.
Desterro é um trabalho de elaboração técnica mais
apurado, e vai além da cobertura do primeiro, embora siga um argumento
semelhante. Utiliza-se de imagens terrestres, aquáticas e aéreas para mostrar a
vida dos moradores às margens do Rio Meia Ponte esquecida pelo poder público e
pela sociedade.
Nesse
documentário, vemos o relato sobre o descaso das autoridades, a negligência
médica e a miséria absoluta em lugares como o acampamento dos sem-terra e a
própria Vila Roriz cujo nome estava sendo mudado, a pedido do autor do
loteamento (Joaquim Roriz), que provavelmente não queria ver sua marca atrelada
a um espaço de miséria e abandono que ele mesmo ajudara a fundar.
Há
também o depoimento de uma mulher que se lembra de como sua mãe, sofrendo de
hanseníase, foi retirada da casa da família para ser isolada na vila construída
pelo poder público como política de higienização social chamada Colônia Santa
Marta.
As
preocupações de Luiz Cam não eram inócuas, como não é, nem nunca foi, a luta de
Belém pelos direitos das minorias e por políticas públicas que contemplem os
marginalizados em Goiânia. Em 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU)
divulgou um relatório, segundo o qual, a capital goiana era uma das cidades
mais desiguais do mundo, levando em conta a renda da população e o acesso a
políticas públicas como saneamento básico e água tratada.
A
realidade apontada por Cam em seus documentários do começo dos anos dois mil
ainda gritava em 2010, e hoje, quase 15 anos após sua produção, não mudou nada.
Neste sentido, Luiz Cam nos deixou um legado crítico da história de Goiânia,
uma capital ainda em fase de crescimento, um crescimento feito à base de
iniquidades e descasos com as populações pobres, que migram para a capital sob
o desejo de mudança, de inclusão, desejo de exercer seu direito de ser e de
viver como cidadãos verdadeiros, donos de sua voz, mas que acabam nos porões da
desigualdade. A cidade sempre “lhes nega oportunidades, mostra a face dura do
mal.”
Eu
já tinha visto os documentários de Cam quando marcamos a caminhada. Eu já sabia
que ia andar ao lado de um sujeito que, além de carismático, tinha uma visão acurada
sobre as questões da cidade, como a do próprio Belém.
A
ideia de nossa caminhada era traçar novas rotas e olhar a cidade criticamente,
suas esferas de classificação e de exclusão, o modo como o poder se apropria
dos desejos e os encaixota e os reprime. Seria a primeira de muitas que
faríamos. Mas depois daquela marcha inesquecível nunca mais voltamos a traçar uma
nova rota que desse conta da cartografia do desejo desenhada em nossa alma.
Périplo número 1
Os quatro cavaleiros do
chope-a-litro
Quando
Cam chegou ao café do mercadinho central, na Vila Nova, já eram quase onze
horas. A farra da marcha começou. Suas gargalhadas se misturaram às do Belém e nos
impulsionaram rumo ao Mutirama. Subimos a Avenida Independência. Na altura da Casa
da Indústria, todo o trecho da Avenida Araguaia estava tomado por máquinas
trabalhando na nova obra que ampliaria o parque, ligando-o ao bosque Botafogo,
antes separado pela extensão da Araguaia que vem da Praça Cívica, cruza a
Anhanguera lá em cima, depois as avenidas Paranaíba e Contorno, e segue seu
rumo passando por cima da Marginal Botafogo até desaguar na Independência, onde
estávamos.
Paramos
para ver as máquinas trabalhando lá embaixo, destruindo o trecho da avenida para
criar a nova estrutura do parque ampliado. Muito tempo depois, inaugurou-se
naquele trecho o Túnel Jaime Câmara, que quando chove forte enche de água até a
tampa.
Subimos
a Independência mais um pouco e viramos à esquerda, na Avenida Contorno. Chegamos
em frente à antiga Escola Técnica Federal, hoje IFG, onde Cam fez o curso
técnico de Edificações. Ficamos por ali parados e conversando sobre os tempos
de escola de Cam, que se lembrou de algumas namoradas.
Na
ocasião de nosso passeio, apesar de as obras do Mutirama já estarem em pleno funcionamento,
ainda havia resistência de moradores das casas espremidas numa pequena área
entre a Avenida Contorno, a Rua dos Comerciários e a Rua CD que desemboca na
Marginal Botafogo. Algumas teriam de ser desocupadas. Do ponto do IFG, na
Contorno, caminhamos até a marginal Botafogo procurando saber quais casas
seriam demolidas. Debalde.
Voltamos
em marcha pela Avenida Paranaíba e descemos a Araguaia de novo, passando pelo
sebo Hocus Pocus, um foco de resistência de livros e revistas que já merecia estar
tombado pelo patrimônio cultural da cidade.
Viramos
à esquerda na Contorno, passamos pelo Supermercado Tatico, subimos a Rua 64 e
paramos em uma bar, na esquina com a Rua 60, para tomar a primeira cachaça.
Bebi cerveja junto com Vilson, sujeito
alto, tranquilo, gente boa, ar de pantaneiro bonachão, que tempos depois
voltaria para Campo Grande, sua terra natal. Bebíamos e tagarelávamos. Éramos
agora os Quatro Cavaleiros do Chope-a-Litro.
Deixamos
o boteco da 60 pela 58 e desaguamos na Paranaíba para lá na frente virarmos à
direita na rua 70. Paramos ao lado de uma daquelas casas antigas da capital,
construídas nas primeiras décadas de sua fundação, uma dessas casas de
arquitetura indefinida. Não me lembro o que Cam me falou dela.
Dobramos
a rua 55 em cuja esquina com a Avenida Goiás entramos numa lanchonete. A ideia
era comprar água, mas acabamos bebendo mesmo foi mais uma cerveja porque
sabíamos que se transformaria em água vertida em suor e urina logo adiante.
Seguimos
pela Goiás à direita, rumo à Praça do Trabalhador. Quando chegamos em frente ao
Cine Fênix, paramos e ficamos olhando os cartazes de filmes pornôs. Conversávamos,
mas muito dessas conversas se perdeu. Lembro-me que travei um pequeno diálogo
com Cam sobre literatura e falei que adorava a obra de Milton Hatoum, sobretudo
pela natureza trágica de sua narrativa, em que a morte estava sempre presente,
à espreita, e quando menos esperávamos ela surgia.
Permanecemos
um tempo diante do Cine Fênix, confabulando desejos. Imiscuímos o passado,
enquadramos o futuro, deliberamos projetos. Belém lembrou de uma cena do Concerto da cidade, um de seus
documentários co-roteirzados por Cam, em que uma mulher aparece tomando banho
de sol no terraço de um prédio (quem terá pensado nessa cena?). Belém mostrou o
prédio. Olhando no sentido da Praça do Trabalhador, um pouco para a direita, vemos
a silhueta da torre, cúmplice dos banhos de sol de uma mulher quase nua.
Cartografia do desejo
Tínhamos
um olho no passado e outro no futuro, mas eram lugares do não mais e do não
ainda. Só Cam havia fincado os pés no presente. Na boca do leão, Cam queria
entrar no Cine Fênix. Queria espiar o que se passava naquele momento, talvez
medir a tonalidade dos gemidos, matar a saudade das sessões solitárias, ou talvez
fosse apenas uma curiosidade libidinosa que ele queria eliminar.
Cam
queria entrar. Belém queria seguir adiante. Cam protestou. Vibrei com o
protesto, mas covardemente fiquei calado. Se Belém cedesse a pressão do amigo,
entraríamos todos para a câmara escura do desejo, veríamos os orgasmos
produzidos entre realidade e ficção, porque nunca se sabe até que ponto um
orgasmo em um filme de sacanagem é verdadeiro ou fingido, como nunca se pode
saber de fato quando o orgasmo de uma mulher é fictício, para agradar ao
parceiro, ou verdadeiro, agradando a si mesma.
Vilson,
o pantaneiro observador, observava atentamente a disputa, mas também não se
manifestou. Quem cala consente. Mas consente com o quê, neste caso? A
civilidade, suave, conduziu a força, e então seguimos, sob mais um pouco de
protesto de Cam, sempre mui ponderadamente, de boa, como se a realidade fosse
uma coisa aceitável, mas não necessariamente a ser seguida.
O
fato é que se formos levar em conta as teorias nas quais acreditamos, castramos
Cam. Somos leitores de uma turma dos anos 70 e sabemos o peso da repressão do
poder sobre os corpos e as mentes. Sabemos disso lendo estudiosos como Félix Guattari
e Gilles Deleuze que discursam sobre a libertação do desejo.
Em
O Anti-Édipo, por exemplo, Guattari
e Deleuze argumentam em favor da compreensão e da libertação “da potência
revolucionária do desejo”. Para o status quo, os governos, o poder, enfim, o
desejo gera o caos, o desejo aparece como função de desordem, e por isso deve
ser disciplinado, canalizado.
Em
Micropolítica: cartografias do desejo (em
parceira com a brasileira Suely Rolnik), Guattari é contra essa ideia
repressora, em que uma série de pequenos poderes (olha nós na jogada) contribui
para a repressão. Guattari coloca o “desejo enquanto formação coletiva”. A
ruptura dessa micropolítica é chamada de marginalidade, e combatida pelo poder.
Em
Revolução molecular: pulsações políticas
do desejo, Guattari diz que há um mito “de uma necessária castração do
desejo.” Ele vê a marginalidade não como “manifestação psicopatológica, mas
como a parte mais viva, a mais móvel das coletividades humanas nas suas
tentativas de encontrar respostas às mudanças nas estruturas sociais e
materiais.”
Para
Guattari, “o desejo é sempre o modo de produção de algo, o desejo é sempre o
modo de construção de algo.” De novo na Micropolítica,
ele lembra que as pequenas estruturas de poder estão elencadas nas teorias
clássicas da psicanálise e do estruturalismo. “Para qualquer uma dessas teorias”,
diz o filósofo francês, “‘o desejo é legal, tudo bem, e muito útil’, mas é
preciso que ele entre em quadros - quadros do ego, quadros da família, quadros
sociais, quadros simbólicos (pouco importa como se chame isso). E, para isso,
são necessários certos procedimentos de castração, de ordenação das pulsões.”
Castramos
Cam naquela tarde de vadiagem etílica. Em todo caso, após essa célere mea
culpa, é bom lembrar que nem Cam era um marginal naquele círculo, nem nós
éramos o status quo moralizante, modo geral. Mas, grosso modo, fizemos esse
papel. Castramos Cam.
Cam
seguiu ainda com as atrizes pornôs por mais algum tempo na cabeça, sem falar
nada. Quer dizer, falava outras coisas, mas de vez em quando percebíamos que a
natureza da fala ainda era a frustração de não ter entrado no Cine Fênix.
Périplo número 2
Pedrinhas azuis
Pegamos
a Rua 61 e depois a 74. Chegamos ao Mercado Popular, na divisa do centro com o
Bairro Popular (na verdade histórica da fundação de Goiânia, Bairro Popular era
toda a faixa após a Avenida Paranaíba, dos dois lados da Avenida Goiás, até
topar com a linha divisória da Avenida Independência), cercania da área
estigmatizada pelo acidente radiológico do Césio 137 de 1989. Bebemos mais umas
cervejas ali, e seguimos a caminhada.
Do
Mercado Popular, seguimos pela Rua 57, onde ficava a casa do homem que pegara o
cilindro (parte de um equipamento de radioterapia abandonado nos destroços do
antigo Instituto Goiano de Radioterapia, na Avenida Paranaíba) que continha o
Césio 137 e começara a desmontá-lo ali. Seu irmão achou lindas umas pedrinhas
azuis de Césio e as levou para a filhinha Leide das Neves brincar. Ela foi
totalmente contaminada pelo material radioativo para morrer logo em seguida
(seu corpo foi encerrado num caixão de meia tonelada de chumbo e enterrado no
Cemitério Parque, região Norte de Goiânia). O terreno da casa do catador está hoje
capeado por uma grossa camada de concreto, sem nenhuma construção em cima.
Belém
fez uma serena explanação do Bairro Popular, com ruas singelas até hoje. O
bairro meio que parou no tempo. Dobramos a esquina da Rua 80 e visitamos a casa
de um amigo em comum de Belém e Cam. Desde a tragédia do Césio 137, muita gente
se mudara de lá. Mas outras famílias resistiram a tudo, ao fatídico
acontecimento, ao estigma da desgraça e ao mito de que todos estavam morrendo
de câncer por causa do Césio. Muitos morreram mesmo.
Um
dos moradores que morreram anos depois era conhecido dos dois amigos. Fomos à
casa da viúva que já estava casada com outro. Perguntamos pelo fulano, mas ele
não estava. A mulher, muito simpática, que também era amiga dos dois, nos
convidou para entrar. Entramos. Ela contou muitas histórias. Conversaram muito.
Lembraram-se da juventude cheia de festas e brilho.
A
essa altura, já era quase uma hora da tarde, e não tínhamos almoçado. Mas por
educação, não aceitamos o almoço da simpática senhora. Após o bom papo, seguimos
a marcha. Saímos da Rua 80, dobramos à esquerda na 59-A, e em seguida à direita
na Francisco da Costa Cunha (antiga Rua 26-A, onde ficava o ferro velho para o
qual a cápsula do Césio 137 semidesmanchada fora levada pelo catador). Veja que
o poder público tratou de obliterar o nome da rua pelo qual era conhecida na
época do acidente.
Foi
nesse espaço entre a 80 e a 26-A que Luiz Cam me contou uma das histórias mais
extraordinárias do comportamento humano, dessas que caem como luva na
cartografia do desejo da cidade.
Morte, tesão e legitimidade do
desejo
Nossas
conversas eram polifônicas. Belém falava de um lado sobre o Césio 137 e Cam me
abastecia do outro com sua versão de como a viúva que visitamos se apaixonou
pelo atual marido, que também era amigo deles.
Os
dois homens eram amigos, o defunto e o vivo. Quando o primeiro morreu, o
segundo foi consolar a viúva, e no velório mesmo engataram uma relação que
durava até aquele dia de nosso périplo. E certamente até hoje.
Fiquei
intrigado com o interesse da viúva pelo amigo do morto no momento do velório.
Lembrei de cenas de literatura parecidas, como o menino de O templo do pavilhão dourado, de Yukio Mishima, que viu a mãe
transando com um homem desconhecido para ele, diante do pai no leito de morte.
A
cena de Mishima é desconcertante, mas a relatada por Cam nos oferece uma
surrealidade escandalosa e ao mesmo tempo legítima. Quem há de dizer que não?
Mas é curioso pensar sobre essa mulher. Acendeu-se-lhe uma chama de desejo
diante do morto, o mesmo morto que antes amava-a, e ela no mínimo se entregava
a ele. Os dois no mínimo faziam sexo. Eles se entregavam na cama e transavam. Ele
a penetrava e gozava, e ela certamente gemia. Eles se entrelaçavam intimamente
e se comiam.
Até
quando o sexo ocorreu antes da morte do marido, não dá pra saber, mas eles eram
casados e faziam sexo. Foi isso que me intrigou. Naquele velório, o morto no
caixão e a viúva ali ao lado, recebendo as visitas. Tanta gente olhando aquele
caixão. Havia a dor da perda, mas o corpo dela não se entregou ao luto. Seu
corpo reagiu à presença do corpo de outro homem, e ela deve ter sentido isso. Este
foi meu espanto, misturado a minha imaginação maliciosa, é verdade. Ela deve
ter sentido, eis meu espanto, quando naquele momento, o morto ali, ela notou-se
fisgar pelo desejo por outro homem.
A
vagina contraindo de tesão, bem ali, debaixo de uma calcinha e um vestido,
talvez, ou um calca, uma saia, secretamente, diante do caixão do marido. Eu perguntei,
“cara, os dois se interessaram um pelo outro no velório mesmo?” E Cam disse “sim”.
E eu disse “cara, que trash!”, e Cam soltou uma risada muito boa.
Já
estávamos saindo da 26-A (Francisco da Costa Cunha), seguindo a caminhada, dobrando
à esquerda na Rua 15-A, quando apareceu o marido vivo, sem camisa, simples, faltando
uns dentes, descabelado, mas forte. Cam não pensou duas vezes. Ao avistar o
sujeito, disse sorrindo pra ele, como se dissesse pra mim mesmo, abraçando-o:
-
Olha o trash aqui. Esse é o marido da X.
Senti
um pouco de arrepio no fundo da alma, não pela cena que eu havia imaginado
antes, mas pelo receio de que o homem perguntasse “como assim, trash?, do que
vocês estão falando?” E Cam contasse toda a história.
Mas
não houve nada disso. O cara era simpático. Cumprimentou-me e danou a conversar
com Belém e Cam. Eles conversaram uns dez minutos, enquanto eu travava diálogo
com Vilson, e então seguimos o passeio.
Périplo número 3
Diálogos etílicos e gargalhosos
Era
quase uma e meia da tarde quando dobramos à direita na Rua 25-A e passamos por
dois locais muito vivos na cartografia afetiva de Belém. Primeiro, ainda na
25-A, o prédio da antiga Fundação para o Bem-Estar do Menor (Febém, onde os
meninos só levavam porrada), cenário do docdrama de Belém, Recordações de um presídio de meninos, símbolo da luta ferrenha de
Belém contra as injustiças sociais. Depois, já dobrados na Avenida República do
Líbano, passamos pela antiga casa onde Belém viveu sua infância, na esquina com
a 59-A.
Se
no prédio da ex-Febém instalou-se a Secretaria Municipal de Assistência Social,
o velho lar de Belém entregou-se a uma concessionária de veículos. O
capitalismo venceu um partícula do passado do meu amigo. “Brincávamos aqui. Quando
chovia, era uma festa”, Belém ainda lembrou, ao olhar para um córrego capeado
sob a República do Líbano (o Capim Puba).
Já
estávamos pregados de fome e de cansaço a essa altura, mas ainda não se falava
em parar para comer. Já não havia sequer vestígio de álcool no sangue.
Evaporara tudo. Subimos a República do Líbano, passamos pela Praça Tamandaré, viramos
na Rua 9 do Setor Oeste, passamos em frente ao prédio do consultório do Belém e
margeamos pelo lado do Bar Glória.
Cogitamos
parar no Bar Glória. Mas pensamos melhor. Seríamos caçados e condenados pelas
mulheres dos respectivos homens daquela caminhada. A castração agora foi geral.
Glória é sempre lotado, com música ao vivo aos sábados. Enquanto passávamos, imaginamos
o quanto seria bom parar ali e tomar uma cerveja, sob o som de batuques e
movimento de pessoas.
Sentaríamos
ao balcão, porque as mesas estavam lotadas. Observaríamos o movimento, e Cam se
encarregaria de travar diálogos etílicos e gargalhosos, uma espécie de
diplomacia da representação do oposto, com outras pessoas. Mas a glória ficou
para trás, junto com o bar, e nosso inglório cansaço nos impulsionou para as ruas
do Setor Sul.
Atravessamos
a Avenida 85 e adentramos o espaço do bairro mais diferente de Goiânia, com um
traçado sui generis em relação às cidades brasileiras. Não há igual. É fruto da
ruptura do projeto original de Attilio Corrrea Lima, quando este deixou o
projeto de urbanismo de Goiânia e Armando de Godoy entrou com nova proposta.
Onde o vento faz a curva
Nessa
parte do périplo, mais uma aula de Cam. Dessa vez, nada de surrealismo. Uma
aula clássica. Discutimos sobre a cartografia do desejo e sobre o projeto
arquitetônico do Setor Sul. Cam falou das ruas recurvas dando para os fundos
das casas, convergindo em pracinhas que serviam como espaços públicos arejados
e arborizados.
As
curvas das ruas, me explicava Luiz Cam, eram para seguir o movimento dos ventos
que nunca correm reto, correm sinuosamente, como quem dança. O projeto teria
sido inspirado na cidade americana de Radburn, vislumbre arquitetônico do
americano Clarence Stein (1882-1975) cujas concepções vêm dos modelos de cidades
jardins.
Mas
a fome apertava o estômago e os calos apertavam os pés. Tivemos coragem ainda para
subir até um bar em frente ao Peixinho, na Dom Emanoel Gomes, no Marista. O Peixinho
é um bar tradicional daquele bairro, mas o estabelecimento da frente não
consegue se firmar e sempre muda de direção, de nome. Não me lembro, portanto,
sob que denominação aquele bar respondia naquele dia. Mas estava legal. Chegamos
lá por volta das 15 horas e só saímos à noite.
Nungórdi doce
Bebemos
chope. Comemos petiscos de boteco. Uma dose ou outra de cachaça. E os quatro
cavaleiros do Chope-a-litro estavam finalizando a grandiosa jornada. Ainda tive
tempo de ouvir de Cam uma piada que é um clássico do humor pornográfico goiano,
aparentemente preconceituosa, mas na verdade, totalmente libertária,
anti-homofóbica e anticonservadora, algo criado pelo gênio da terra.
Um
senhor da roça, pai de um adolescente da roça, visita com o filho um compadre
na fazenda vizinha. Chegando lá, os dois compadres travam uma conversa animada.
O dono da casa oferece doce ao velho. E ele diz “não, obrigado”. Oferece doce
ao garoto, e o pai antecipa a resposta do filho: “Não, ele não gosta de doce.”
Passa um tempo, o anfitrião volta a oferecer doce. “Não, obrigado”, diz o
velho. Na oferta ao menino, o velho antecipa novamente: “Não, ele não gosta de
doce.”
Na
terceira oferta, o velho nega, e mais uma vez fala pelo menino: “Ele não gosta
de doce.” Foi aí que o moleque, já não aguentando a intromissão do pai,
desabafa num sotaque bem caipira: “Nungórdi doce, nungórdi doce. Jadinteocu pur
caz di doce, nungórdi doce!”
Era
a primeira vez que eu ouvia essa piada. Todos nós morremos de rir. A mesa se
encheu de festa, com microborbulhas alcoólicas dançando no ar. Luiz Cam ria e
seu corpo fazia coro na risada. Seus ombros seguiam o ritmo da gargalhada como
se dissessem é isso mesmo, estamos felizes. Sua risada era um decreto de
alegria.
Adeus
Luiz
Cam ria e ninguém mais tinha desculpa para tristezas eventuais. Não era uma
risada espalhafatosa, era elegante, mas tomava conta da intimidade do ambiente
onde ele estava, redirecionava os sentidos. Os olhares ficavam acesos e todos
sentíamos uma confiança de que o papo estava
bom. Sua risada era um selo de qualidade na conversa.
No
fim daquele dia, Cam acabou nos deixando no bar. Saiu sozinho. Continuou a
caminhada solitariamente, embora se saiba que a solidão não era seu porto. A
solidão não era seu alvo naquela noite em que a cidade se abriu para nós e a
cartografia do desejo estava delineada em nossas lembranças. A cidade era
nossa. Era o que queríamos ter. Naquela tarde que mergulhou na noite, a
cartografia do desejo fez sulco em nossa memória para sempre.
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