Gabriel Nascente na Pio Vargas
Foto: Gilberto G. Pereira
Detalhe do monumento às três raças, na Praça Cívica, onde fica a Biblioteca Pio Vagas |
Poesia
é um troço mágico, que te pega pelo ritmo e te arrasta até o sulco do
significado. Um poeta é menos construção do que dom de manejar a palavra fora
da fileira gramatical, num campo específico do poético. Neste caso, é comum
vermos poetas nascerem cedo. É mais fácil testemunharmos uma precocidade na
poesia do que na prosa.
Ontem
(11/04/2017), eu estava caminhando pelo centro e decidi verificar se havia na
Biblioteca Pública da Praça Cívica um livro de Gabriel Nascente chamado Os
gatos, que ele lançou aos 16 anos, em 1966, na famosa livraria Bazar Oió. A
livraria, que foi um aglutinador de intelectuais nos anos 1950 e 1960 em
Goiânia, não existe mais. Mas o livro de Nascente ainda está vivo por aí, como
portador de sete vidas (e a magia da poesia cede mais vidas que isso).
Os gatos está
em sua segunda vida, digamos assim. Nascente não o rejeitou, e em 2011 publicou
a segunda edição do livrinho, fazendo apenas o alerta de que eram seus
primeiros versos, um tanto romântico, um tanto ingênuo.
Não dá
pra buscar excelência no primeiro livro de Nascente, mas pode-se constatar nele
a verve criativa do poeta, o modo como ele expressa sua visão de mundo,
tentando compreender a si mesmo no estado de coisas.
Pio Vargas
As
principais figuras que surgem no corpo poético de Os gatos são a figura
do eu, da natureza e da mulher, metaforizada nos gatos ou não.
Neste
sentido, a aparição de Nascente em 1966 tem o mesmo valor da aparição de Pio
Vargas em 1983, com a diferença de que este, mais tarde, meio que rejeitaria,
pelo menos recomendou que não lessem, seu livro de estreia, Janelas do
espontâneo, escrito entre seus 13 e 17 anos.
Pio
Vargas morreu em decorrência de uma overdose, aos 26 anos, em 1991. Como
recompensa e homenagem à sua curta vida, em que se tornou um poeta notável,
tido por alguns críticos como o maior poeta de seu tempo em Goiás, deu-se seu
nome à Biblioteca que visitei.
Confesso
que não conheço a poesia goiana tão bem a ponto de discordar, mas, parece-me
que Vargas seria um grande poeta se não tivesse morrido, não mais que isso.
O que
Pio Vargas fez em Janelas do espontâneo, Gabriel Nascente havia feito,
com poucas modificações de olhar em Os gatos. Ambos têm uma precocidade
verificável e verossímil, mas que não é rara nos poetas.
É que temos
o hábito de lembrar apenas dos poetas que se destacam nacional ou
internacionalmente, como Paulo Leminski, que aos 16 anos era paparicado pelos
irmãos Haroldo e Augusto de Campos e chamado de novo Rimbaud, este que aos 16
anos despontou na cena poética de Paris.
Paralelos
Alguns
fazem um paralelo entre a figura de Vargas e a de Rimbaud para depois dizer que
Vargas não pode ser considerado o Rimbaud do Cerrado, porque assim sua poesia
(a de Vargas) seria reduzida à de um epíteto. Outros, mais pé no chão, acham
que Pio Vargas estava acima de Leminski.
Nem
Leminski era um Rimbaud, não passando de um bom poeta (genial, no sentido de
ser criativo à beça, mas longe de ser um gênio), nem Pio Vargas é um Leminski
(poderia ter sido, talvez, se a vida tivesse lhe dado chance).
Li Anatomia
do gesto, o livro mais maduro de Vargas, e gostei. Confesso que não li com
tanto cuidado a ponto de fazer uma crítica, logo, isto aqui é só uma observação
de leitor. Trata-se de um imenso avanço técnico e profundo cuidado imagético em
relação ao livro de estreia.
A
organicidade dos poemas, o ritmo e as galerias metafóricas entre o corpo, a
alma e a vida são impressionantes. Vargas também tentava fazer isso em Janelas
do espontâneo, com menos sucesso, obviamente, pela falta de experiência de
vida.
O que
vi no livro que reúne todos os seus livros, organizado por Carlos William Leite
(editor da Bula, o bem-sucedido portal de literatura de Goiânia), me fez
sentir vontade de ler Pio Vargas. E certamente é o que farei.
Comparações
Por
enquanto, permaneço na lembrança de ter encontrado Os gatos, de Gabriel
Nascente, na Biblioteca Pio Vargas, e acabei tendo a curiosidade de comparar o
primeiro livro de Nascente com o primeiro de Vargas.
Em Os
gatos, o sujeito poético de Nascente diz coisas como:
“A densa
tarde de brumas inacabadas
que
hoje passa pelo farol noturno
das
ruas é a surpresa da noite.”
E Pio
Vargas, em Janelas do espontâneo, diz:
“brilha
o gigante girassol
no
horizonte
vomitando
luzes frouxas
à
terra.
descansa
o jardim
e
minha tarde começa a acontecer.”
Diz
Nascente em seu livro de estreia:
“Cai
chuva
porque
enquanto
a terra molhas
eu
choro meus versos
em
silêncio.”
Diz
Pio Vargas em seu livro de estreia:
“Há
uma espera
entre
a chuva e o vento:
o
vento empurra cruciante
nuvens
que querem chover!
a
enorme folha cinzenta
desliza
lentamente
no
tempo,
enquanto
o vento bravio
varre,
preparando, a terra.
a
terra sorri...
mais
um pouco,
e o
vento libera o espaço:
gotas
de amor
no
seio da semente...”
...
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